O sol nem mesmo raiara quando descemos
do carro naquela madrugada. E nem éramos os únicos com aquele
objetivo. Depois de percorrer cerca de dez quilômetros do Terminal
da Praça da Bíblia, ao Terminal Padre Pelágio nos preparávamos
para a nossa peregrinação. Eu tinha dois objetivos com a caminhada
prestes a começar. Um deles era completar minha visão em relação
à minha acompanhante. O outro... Digamos que eu não sei qual era
esse objetivo.
Vinte quilômetros foi o percurso que
fiz ao lado de Terezinha Cleide da Silva. Os olhos castanhos,
escondidos atrás dos óculos com armação de massa brilhavam de
felicidade. A graça pedida, alcançada. Agora era o momento de
agradecer à Divina Providência, na pessoa da Santíssima Trindade
pela gravidez bem sucedida e pela saúde da pequena Nayara.
- Evaldo dia vinte e oito passo na sua
casa de madrugada pra gente ir em Trindade, a pé! – foi assim,
pelo telefone, que ela me anunciou o que faríamos naquela manhã de
domingo. Recebi a ligação em pleno feriado de Corpus Christi. Tinha
acabado de me mudar. No momento fiquei griladíssimo. Não tinha
feito promessa alguma para ter que cumprir. Perguntei por que eu
tinha que ir e, ela me respondeu apenas com rodeios.
- Não interessa menino. Eu fiz
promessa pra você ir comigo e com seu padrinho até Trindade a pé.
E você vai. – eu não sabia a promessa que ela tinha feito para
que eu cumprisse, mas a dela era clara. Cleide a carregava para cima
e para baixo desde que deixara de trabalhar na confecção de moda
praia em janeiro.
O nome dessa graça era Nayara. Num
momento desses eu tenho a certeza do poder que a palavra tem. E que a
transformação de um drama particular, em espetáculo coletivo faz
com as pessoas.
Nayara não foi a primeira opção
para a criança, filha de Cleide e Odimar. O bêbe se chamaria
Geovana caso a mãe não tivesse ficado fascinada com a história
bizarra protagonizada pelo namorado apaixonado Lindeberg e suas
vítimas Nayara e Eloah.
O martírio de umas fez com que o nome
outra fosse escolhida. O nome de uma garota que nasceu sob uma série
de riscos.
Cleide era mãe de um único filho,
Gustavo que tinha oito anos na época. E desejava ardentemente ser
mãe de uma segunda criança. Só que ela tinha alguns problemas com
isso. Na primeira gravidez ela sofreu muito. Pressão alta, começo
de diabetes, pre-eclâmpsia. Mesmo naquela época ela teve que tomar
muito cuidado com o corpo.
A mãe coruja não podia deixar a
responsável pela peregrinação em casa. Assim, a pequena Nayara,
acompanhou todo o trajeto de Goiânia a Trindade em um carro que não
passava de trinta por hora na rodovia dos romeiros. E enquanto isso
eu caminhava ao lado de Cleide. Conversávamos sobre muitas coisas.
Depois do primeiro quilometro eu dei o bote.
- Tia... já que a senhora não vai me
contar que promessa fez eu pagar quero te pedir uma coisa.
- Pedir o que, menino? – ela me
respondeu. Nem parece que cresci, como não parece a uma mãe que seu
filho cresceu. Minha tia, que também é madrinha, fez parte de toda
a minha infância. Cresci ouvindo os gritos dela. E que gritos. Até
hoje eles ecoam em meu ouvido.
Cleide nunca foi a mais calma das
mulheres, nem mesmo a mais controlada. Ela sempre se irritava com os
sobinhos, mesmo quando não faziam nada demais. Brincadeiras de
criança, é claro. E diante de um ou outro ela dizia que não era
assim quando tinha a nossa idade. Mas nem sempre.
Naquela manhã de vinte e oito de
junho, quando o sol começava a queimar nossas costas na rodovia dos
romeiros ela não ficou irritada. Apenas perguntou com um forte tom
de brincadeira.
- É um texto que eu tenho que fazer.
Quero falar da senhora. Contar um pouco da sua história. Um pouco
das coisas que vimos e vivemos. – eu respondi rapidamente. Nos
aproximávamos de um posto de apoio. A segunda estação da via
crucis representada na estrada. Uma garrafa de água mineral para
cada um. E começamos a conversar. Perguntei por que ela estava ali,
depois de perguntar mais uma vez por que eu estava ali. Não tive
resposta para a primeira pergunta. Com a segunda, no entanto, ouvi
essa história.
Cleide tinha um medo enorme de
qualquer tipo de médico. Qualquer espécie de cirurgia. Se ela
pudesse imaginar o que teria que fazer para superar esse medo. Com
trinta e nove anos ela é a mais jovem de oito irmãos. A única a
ter nascido em um hospital. Os outros foram frutos de parto normal,
na fazenda onde seus pais moravam. E a mais jovem da família foi
responsável pela salvação do mais velho.
Em uma tarde de 2003 ela recebeu um
telefonema no trabalho. Seu irmão estava internado. A pressão dele
tinha subido a níveis estratosféricos. A uréia tornava seu sangue
simplesmente venenoso. Os dois rins deixaram de funcionar. Por um ano
ele esteve mergulhado em tratamentos paliativos. Enquanto esperava os
exames que tornariam possível a sua sobrevivência.
E por esses exames Cleide foi obrigada
a perder o medo de hospital. O medo de cirurgias. Dos sete irmãos,
apenas ela tinha compatibilidade total com o mais velho. A maior
chance de sobrevivência para o renal crônico estava em arrancar um
pedaço de seu corpo e transplantá-lo no irmão. Foi o que ela fez,
mesmo sabendo que corria o risco de não poder ter seu segundo filho.
E ela salvou o sangue do seu sangue.
Em 2006 ela resolveu. Era o momento de
conceber Nayara. Só que nada é tão simples quanto parece. – ela
me diz com um sorriso tranqüilo enquanto nos aproximávamos da
sétima estação da via crucis. O cheiro de parafina queimada
invadiu nossas narinas. Ela começava a sentir a panturilha e, ainda
rindo, lembrou-se de algo que tínhamos conversado antes de começar
a caminhar.
- Pensa se eu tivesse vindo com meu
tamanco. Não ia conseguir andar de jeito nenhum, nem acompanhar seu
ritmo. – o que mais nos incomodava não era o sol, nem a longa
caminhada que tínhamos pela frente. Metade do caminho tinha sido
percorrido. Com um olho na trilha e outro na estrada, de onde víamos
o carro que levava a pequena Nayara do alto de seus longos cinco
meses. A mãe coruja preocupava-se mais uma vez.
“Ela não ta com vontade mamar.”
Pensou em voz alta. Como se eu não estivesse ali. Quase me esqueceu
no momento da preocupação.
- Você sabe que eu to indo a pé
assim por causa dela, não sabe? Foi isso que eu prometi... ir a
Trindade a pé se ela nascesse bem. E nasceu. Ta ali do lado, rindo
da gente. – o que nos preocupava era o que estava à frente. E do
lado. Era o primeiro domingo da festa, mas ainda assim a estrada
estava lotada. E nem todo mundo tinha o mesmo ritmo de caminhada. E
isso atrasava a gente. Uma família inteira esteve por um momento
prestes a ser xingada por ela. No meio da peregrinação. Cinco
pessoas andando lado a lado, sem abrir uma única brecha pra quem
vinha atrás passar por eles. Um xingamento e um grito. Quase! Mas
ela se controlou. Saímos do passeio, andamos alguns metros no
acostamento e voltamos ao passeio.
Trindade estava diante de nós. A
rodovia dos romeiros desaparecera deixando para trás a promessa
cumprida. À frente a Basílica do Divino Pai Eterno. Padroeiro de
Trindade e dono daquela festa.