Conceito
Folia de Reis são os cortejos religiosos populares que giram, normalmente, do Natal até o dia de Reis (6 de janeiro), representando a viagem dos Reis do Oriente a Belém para adorar o menino Jesus.
A atuação dos foliões se faz pela música. Ela é essencial nos rituais da Folia de Reis. Ao se aproximar de uma casa a ser visitada ou onde se dará o pouso, o grupo forma duas fileiras e já se aproxima tocando uma marcha e, depois, entoando os cantos. Não se trata, entretanto, de música que tenha validade e importância em si mesma, que se esgote no prazer de ouvir e cantar, tocar e dançar. Não há, em outros termos, autonomia estética. Trata-se, antes, de uma função religiosa conduzida pela música. Os foliões são, normalmente, bons músicos - alguns excepcionais -, mas, ao apresentar os cantos estão, antes de tudo, expressando sua devoção, não raro, cumprindo uma promessa.
As narrativas presentes no cantorio têm sua fundamentação em passagens bíblicas ligadas às profecias do Antigo Testamento a respeito da vinda do Messias (por exemplo, Isaías IX, 6 e 7; Isaías XI 1 - 10; Miquéias V, 1-5) e do Novo Testamento sobre a aparição do Anjo Gabriel para anunciar a Maria sua concepção pelo Espírito Santo, a visita de Maria a sua prima Isabel, o nascimento de Cristo e a viagem dos Magos do Oriente para adorar o menino Jesus na lapinha, em Belém (respectivamente, Lucas I, 26 - 38; Lucas I, 39 - 45; Lucas II, 1 - 20; e Mateus II, 1 - 12). É possível que o nome de Reis se sobrepondo à referência aos Magos, como aparece em Mateus, seja decorrente da associação com um verso do Salmo 71 (10 ...os reis da Arábia e de Sabá lhe trarão presentes. 11 E adorá-lo-ão todos os reis da terra).
O intuito central do giro da folia é propagar e celebrar estes acontecimentos.A gente sente aquele amor, aquela paz, aquela alegria pelos Santos Reis. E a gente sente também que tem uma obrigação de seguir aquela tradição, ensinando e evangelizando. Porque o cantar nosso é uma evangelização que a gente faz. Quem prestar bastante atenção, vai vê que nóis tá cantando a coisa que tá na bíblia. Nóis chamamo assim no deserto, nas fazenda, né? Sai girando nas fazenda, fazendo o evangelho (Seu Cândido - Formosa / GO)
Há que considerar, entretanto, que a fixação escrita não é a regra de transmissão dessas passagens. Como afirmam vários foliões, “a leitura é pouca”. Os cantos que narram estas passagens bíblicas são muitas vezes preservados e transmitidos de avós e pais para filhos e netos, de tios para sobrinhos, numa tradição oral, sem prejuízo de, em algum momento, serem fixados em uma tabela. Cantos antigos, herdados e aprendidos apresentam um traço cultural coletivo advindo da perda da referência de seus criadores com o passar do tempo. Mesmo quando a autoria é perfeitamente identificável, prevalece a conexão estreita do talento individual e da criatividade do artista com saberes, fazeres e valores do povo.
Originários de um modo de vida rústico, estes objetos simbólicos criados por homens do povo, oficiais mecânicos ou lavradores, têm ligações diretas com as condições concretas de uma batalha dura pela sobrevivência. Na concepção da sabedoria popular, o mundo da necessidade está longe de ser desencantado. O realismo no trabalho e na esfera econômica básica está associado com a sobrevivência em um universo potencialmente mágico, construído de acasos, azares e sortes, estando sujeito à intervenção de potências malignas e benignas. Neste contexto, a arte dos mestres da cultura popular, ao mesmo tempo em que guarda utilidade para as necessidades da vida, revela-se misteriosa ao lidar com uma força transcendental. O povo os reconhece como homens e mulheres dotados de força íntima, detentores de antiga sabedoria e capazes de agir como intermediários entre o semelhante e o plano do sagrado. Não por acaso, a benção que o embaixador ou guia de folia traz - em nome dos Santos Reis - é tão desejada.
Integrantes
Alferes - Carrega a bandeira com a imagem dos Reis Magos e recebe também os donativos oferecidos pelos moradores das casas visitadas. É função de grande responsabilidade, já que a bandeira constitui objeto sagrado da folia. Ela representa os Três Reis, e por isso deve sempre ir à frente do grupo. Durante as gravações, mesmo fora do contexto da festa, todos os grupos posicionaram o alferes com a bandeira na frente. Esta necessidade foi assim expressa:
Aí se a gente for gravar a folia de São Sebastião nós tem que pegar a bandeira com cumpade João. É bom que a gente canta os verso em pessoa. Vê o jeito que é São Sebastião, né? Fica mais bonito, né? Bandeira de Santos Reis, São Sebastião. Parece que pra cantar sem a bandeira também não é certo não, né? Tem que ter a imagem do santo ali pra gente vê (Francisco Messias - Sagarana).
Palhaço - Também conhecidos por marungo ou bastião. Acompanham e vigiam a bandeira. Fazem a consulta ao dono da casa para saber se estes aceitam a cantoria. Nos arcos e em frente ao presépio, costumam declamar versos referentes à história do nascimento. Executam danças e fazem brincadeiras com os donos da casa, geralmente pedindo donativos. Nas funções de maior sacralidade, mantém a máscara levantada.
Nem toda folia usa o palhaço. Algumas das que usam identificam a origem de suas brincadeiras com a tarefa de retardar e desviar os soldados de Herodes, quando da matança dos inocentes. Outras os identificam com os próprios Reis Magos. Já as que não usam, temem excessos nas brincadeiras ou os associam a potências malignas, às vezes o próprio Herodes.
Embaixador - Também conhecido como guia. Puxa o cantorio. No caso da folia de quatro vozes, a embaixada é feita em dueto com um ajudante do guia. Para bem exercer sua missão, deve conjugar habilidades musicais, capacidade de liderança e conhecimento do fundamento da folia, o que muitas vezes se dá pela transmissão oral. Os versos podem ser fixos - da tabela - ou criados na hora. Neste caso, eles podem ser mais do que um improviso:
Quando cê vai fazer uma visita, aí cê chega lá na casa, cê fica sabendo mais ou menos da situação. Nesse caso não tem jeito de escrever. Isso é uma situação que acontece ali na hora. Como é que é isso? Cê cria os versos. Às vezes cê já tá girando há algumas horas, já tá muito cansado e os versos vai saindo tudo direitinho. De onde vem isso? Quem é que tá cantando ali naquela hora, colocando os versos no lugar certo? Aí que vem aquela parte que eu te disse do amor. Então você tendo amor, pensar sempre em Deus, sempre em Santos Reis, então não existe dificuldade na situação que você encontra. Cê vai encontrando, a situação logo te toca o que você tem que cantar. Então a gente não pode misturar outros assuntos com aquele assunto da folia, aquele assunto de Santos Reis, bíblico. Senão atrapalha. Então, a gente vai tranqüilo, porque a gente sabe que no momento Deus manda o que a gente tem que falar. Pra mim sempre mandou. (Luisinho - Inhumas / GO)
Resposta ou coro - Repete um ou mais dos versos cantados pelo embaixador. Pode ser de seis vozes ou de duas vozes. Vários de seus integrantes também são instrumentistas.
Os Instrumentos
Instrumentos tradicionais
Viola - Considerada o principal instrumento, é da preferência de boa parte dos guias, alguns exímios violeiros. Era o instrumento mais difundido no interior do Brasil, ficando identificada com a música tradicional do Centro-Sul e com a música caipira, que dela se origina.
Caixa - Dá a batida e sustenta o andamento do cantorio. Tradicionalmente feita de forma artesanal pelos próprios foliões de um tronco de madeira escavado, com couro esticado por cordas.
Adufe ou pandeiro - Dão o brilho na percussão
Rebeca - Assemelhada ao violino, porém um pouco menor, mais rústica e normalmente com apenas três cordas. Tornou-se instrumento raro nas folias atuais. Como a caixa, havia uma grande tradição de fabricação por mestres populares, que associavam seu ofício ao de São José, carpinteiro.
Sanfona ou acordeom - A primeira a ser usada foi a Pé-de-bode (oito baixos). Hoje, a maior parte dos grupos usa o acordeom. Apesar de mais recente que a viola e a rebeca, especialmente onde os instrumentos eram fabricados pelos próprios foliões, pode ser considerada um instrumento básico da folia.
Instrumentos mais recentes
Violão - Hoje também usado por muitos guias. Bastante freqüente como instrumento dos integrantes da resposta.
Cavaquinho - Executado por integrantes da resposta ou só no acompanhamento. Não é de uso freqüente pelos guias.
Outros instrumentos de percussão (triângulo ou reco-reco - também chamados rapa-pau ou rapa-rapa) - São de uso restrito.
Funções
Giro - Compreende todo o período em que a folia sai, revivendo, em cada casa visitada, a noite de adoração ao menino Deus pelos Três Reis do Oriente e recolhendo donativos para um banquete comum, normalmente no dia 6 de janeiro. O número de dias do giro, posto varie, é muitas vezes associado à duração da viagem dos Magos do Oriente até Belém. Muitas folias fazem o giro à noite, imitando os Santos Reis que seguiam a estrela guia. Em outros tempos, os foliões só regressavam a suas casas depois da entrega da bandeira, permanecendo reunidos durante todo o giro e efetivamente pousando na última casa em que chegavam a cada dia. Dormindo quase sempre em condições precárias, ou varando a noite no arrasta-pé e no catira, nem por isso tinham menos disposição para a jornada.
Cê vai pra folia. Cê pode dormir em cima de pedra, forrá aqui o chão, tem pedra aí, deitá. Amanhã ocê levanta tá com o corpo bão, não sente nada. E ocê sai da sua casa, cê dorme numa cama boa em outra casa, no outro dia cê amanhece, o corpo amarrotado. E, na folia, não. (Seu Rosa - Tocadores)
Alvorada ou Retirada da bandeira - É o primeiro rito do giro. A bandeira que fica guardada em local especial na casa do festeiro - ou imperador -, durante o ano, é retirada para o início do giro. A bandeira com a imagem dos Reis Magos, representando-os, constitui objeto sagrado da folia e segue sempre à frente do grupo. Em algumas folias também se denomina alvorada a retomada da função a cada dia. Neste momento, os instrumentos são benzidos pelo guia, por um benzedor da comunidade ou pelo padre.
Os cantos de início são, geralmente, voltados para a proteção do grupo, para que o giro ocorra em boa paz e livre de qualquer má influência.
Pelo sinal da Santa Cruz / livrai Deus nosso Senhor Para livrar dos inimigos / foi o sinal que Deus deixou Pra fazer o nome do Pai / com a mão direita fizemos E com essas santas palavras / o nosso corpo benzemos (Anunciação / Terno de Folia de Reis de Arinos - MG; giro dois, faixa 1)
Visita a morador - Mesmo sendo ela costumeira ou já tendo sido previamente acertada, o grupo sempre consulta se os donos da casa querem receber a bandeira dos Três Reis e pedem licença para entrar na casa. Nas folias que usam palhaço - ou caetano, bastião, marungo -, eles se incumbem desta tarefa. As visitas podem ser por devoção. Neste caso, o cantorio tende a ser breve. A companhia canta um verso de saudação ao morador, que recebe a bandeira e a leva a todos os cômodos da casa, e o guia o abençoa e pede a oferta para a festa. Também podem ser devidas a pagamento de promessa. Então o embaixador irá se informar do teor da mesma, ajudando o devoto a cumpri-la.
Os Magos se arreuniram / na terra do Oriente / pra cumprir uma promessa / pr’aquele que tá devendo (...) A promessa que vós fez / viemo para cumprir / os Três Reis lhe dá as mãos / ajuda ao céu subir Aí está os Três Reis Santo / todos de bom coração / pra cumprir tua promessa / os Três Reis lhe dá as mãos (Cumprimento de promessa / Cia de Reis de Formiga - MG; giro um, faixa 4)
Nas casas em que há o presépio montado pelo devoto para a adoração, a função é bem mais extensa. A bandeira é recebida e depois depositada no altar e os foliões entoam os cantos da anunciação de Maria, do nascimento de Jesus e da viagem dos Reis Magos. Este canto costuma ser fixo e conhecido como canto das 25 estrofes ou hino do nascimento. Neste momento, revive-se a visita dos Três Reis do Oriente - comumente percebido como a entidade Santos Reis - ao menino Deus, ali presente na casa do devoto. As imagens de santos no altar também se tornam tema da cantoria, com versos quase sempre improvisados.
Pouso - Denomina tanto a casa em que a folia encerra as atividades da noite - ou do dia - quanto as funções que ali ocorrem. O pouso está associado às paradas dos Reis em seu caminho para Belém e nele há um maior número de funções obrigatórias. A companhia se aproxima da casa tocando uma marcha, organizada em duas fileiras. Os palhaços pedem licença para chegar, ou é entoado um canto de chegada ou de porta. Onde é costume montar os arcos - que, segundo alguns, também simbolizam as paradas dos reis -, há o revezamento entre o cantorio e declamação de versos pelos palhaços. Rompendo os dois arcos, a companhia chega até o altar em que está montado o presépio e canta o nascimento e um pedido de pouso para os foliões e agasalho para os instrumentos.
Terminado o cantorio, é servido o jantar para os foliões e visitantes. No jantar, com as panelas postas em cima da mesa, os foliões se reúnem em volta dela para cantar o bendito de mesa. Este é um canto de agradecimento a Deus e ao dono da casa pela comida ali servida. Alguns grupos ainda vão até a cozinha e cantam para as cozinheiras e serventes, agradecendo seu trabalho. No pouso, os foliões são recebidos com festa e muita fartura, mesmo que a casa seja humilde e os donos de poucas posses, sempre há fartura.
O festeiro, eles quase não gasta, que o tanto de esmola que eles tira no giro quase que dá pra fazer a festa, né? Ganha arroz, ganha ovo, ganha frango muito frango, leitoa, bezerro, ganha muita coisa no giro. Que o povo é muito festeiro de Santos Reis, que foi a visita do menino Jesus. Santo Reis tem muito poder com Deus, que deu conta de enganar o Rei Herodes. (Francisco Messias - Sagarana)
Após o jantar, a função religiosa é encerrada com a reza de um terço, que pode ser cantado. Às vezes o terço é adiado para a saída, no dia seguinte. Desobrigados da devoção, vem a diversão: as cantorias, pagodes, curraleiras, catiras, lundus, que compõem o universo musical caipira.
Meu pai e eu tocava a noite intirinha, né? Festa pro povo dançá. Só viola. Também naquele tempo não existia sanfona, era viola. Era a viola que falava a verdade. E tinha uma turma de catireiro lá. Ele me ensinou tocar catira, que ele gostava demais de dançar a catira e o lundu. Eu toquei muito tempo pra eles. Ruim é que eu não sei dançá catira e nem lundu, que eu só ficava tocando! (...) Tinha um negócio duns palhaço também, que incentivava muito, dançava muito. Chegava numa casa, por exemplo, numa casa de almoço ou casa de pouso, tinha que dar uma volta numa catira, num lundu, dar uma sapatada num catira. (João Timóteo - João Pinheiro / MG)
Entrega da bandeira - Encerrando o giro, os foliões passam a bandeira para o festeiro do ano seguinte, que a guardará em casa até o próximo ano. Também é praxe a bandeira ficar com o guia ou com alguém do grupo que se destaque no cumprimento das obrigações religiosas.
Festa de encerramento - Após a entrega, é realizado um banquete para os foliões e visitantes, ao que se segue uma festa com pagode que costuma romper o dia.
Um pouco de história
Quando, na colonização do Brasil, o cristianismo europeu entrou em contato com as práticas animistas da África e da América, o caráter mais sensível do catolicismo português, com seu recurso às imagens e à simbologia dos sacramentos que davam concretude ao intangível, ajudou a estabelecer uma mediação entre as crenças dos tupis e o ideário cristão. Forjando um paralelismo um tanto precário entre os dois universos religiosos e culturais, os jesuítas associaram os rituais tupis - cujo núcleo era o culto aos mortos - às potências demoníacas. Os sacerdotes combateram as cerimônias autóctones, substituindo-as por uma liturgia coral e imagética que era renovada em cada procissão. Além disso, apresentavam aos catecúmenos uma legião de anjos e santos que podiam ser invocados em caso de necessidade. Santos que, de certo modo, também são almas de mortos que intercedem pelos vivos, o que facilitava sua adoção. É neste contexto que as folias chegam ao Brasil, pela mão dos primeiros missionários.
Em Portugal, o termo folia já existia no século XVI - aparece, por exemplo, no Auto da Sibila Cassandra, de Gil Vicente - e denominava uma dança viva ao som de pandeiro e canto, representando os próprios Reis que vão adorar o menino Jesus. Sua origem está no drama sacro encenado nas igrejas no Natal, durante a Idade Média. Com o tempo, esses dramas deixam de ser apresentados exclusivamente em latim e se libertam da música litúrgica. Há também um deslocamento da ênfase do Officium Pastorum - o nascimento e a chegada dos pastores à manjedoura - para o Officium Stellae, que compreende o anúncio aos Reis, a viagem seguindo a estrela, o encontro com Herodes, a adoração do menino, a entrega dos presentes, o sonho revelador e a volta por outro caminho, o que desencadeia a matança dos inocentes.
Aqui, a folia, como a música e o drama, foi usada pelos jesuítas para a catequese. Os Padres Manoel da Nóbrega e José de Anchieta usavam a folia e outras danças nas procissões e nos autos, muitos escritos na língua geral. Com a consolidação da colonização, os rituais usados na catequese do índio disseminaram-se entre colonos portugueses, negros escravos e mestiços de toda sorte e foram incorporados às festas dos padroeiros. Esta combinação da procissão seguida de folia é recorrente na formação das expressões da música tradicional, como a Folia de Reis, Folia do Divino, Folia de São Sebastião, Dança de São Gonçalo.
A fé e a religiosidade do povo são elementos centrais dessas manifestações tradicionais. Forjadas em séculos de labuta no campo, de lida com a terra, elas permanecem em razão da fé dos foliões e do pagamento de promessas dos devotos. Fora deste contexto, tornam-se eventos que se reproduzem mecanicamente pela imitação dos antigos, mas cujo sentido ficou perdido em alguma curva do caminho.
Por fim, a separação entre a cultura do povo e a cultura da elite, acentuada a partir do movimento romântico, e o afastamento da Igreja de práticas rituais populares que havia criado, mas que já não conseguia submeter ao controle de seus sacerdotes, acaba por criar um estatuto especial para a religiosidade popular. Assim, as festas religiosas conduzidas por beatos populares, rezadores, guias de folia e benzedores terminam por constituir rituais distintos e adquirem novas funções.
A convivência do mágico com o religioso instituído nas práticas da religiosidade popular, não raro com predominância do primeiro, é vista como prática profanadora pela Igreja. Sua condenação entretanto, traz como conseqüência o estabelecimento de um sistema religioso autônomo, alternativo e com maior capacidade de penetração e reprodução entre as camadas populares.
Proibidos nos templos, os rituais da religiosidade popular acabam estabelecendo-se nos locais menos sujeitos ao controle da Igreja: as periferias das cidades, as currutelas e as capelas eretas e mantidas pelas comunidades rurais. Isto fez com que muitas Folias de Reis ficassem circunscritas ao ambiente do campo, levando vários estudiosos a considerá-las um ritual do catolicismo rural.
Esta situação, contudo, começa a ser alterada com a introdução do agronegócio e a conseqüente mecanização da lavoura, que acarretam um acentuado processo de urbanização na década de 70, levando a uma grande migração do campo para a cidade e fazendo com que as Folias de Reis reaparecessem na periferia delas. Este fenômeno leva a duas conseqüências na organização do ritual da Folia de Reis. O giro, que normalmente se dava no período do Natal, entre 24 de dezembro e 6 de janeiro, acaba perdendo esta delimitação clara. Algumas folias sequer giram propriamente: são convidadas para pagamento de promessa e apenas fazem a cantoria na casa do devoto. Além disso, com a diminuição de moradores no meio rural, as distâncias entre uma casa e outra aumentam, inviabilizando, em muitos casos, o giro a pé. As companhias passam a girar em ônibus - geralmente cedido pela prefeitura - ou carrocerias de caminhão, carreta de trator etc. Os foliões voltam para suas casas após as atividades de cada dia e o pouso ganha um novo sentido.
Adaptada, em muitas localidades, ao ambiente urbano - ou suburbano -, a Folia de Reis, assim como outras celebrações da cultura popular, todavia, se reproduz no espaço da vida familiar e comunitária, viabilizada pela rede formada por parentes e vizinhos, geralmente adeptos da mesma religião. Desta forma o festejo mostra força e vitalidade para se manter numa situação de heterogeneidade social e em contato com novidades eruditas ou veiculadas pela mídia.
Fé (depoimento de Sebastião Luiz Ribeiro - Itaguari / GO)
Ela começou com uma manchinha vermelha no olho. Aí a minha filha levou ela lá no Taquaral, no doutor Cid. Aí ele desconfiou e mandou ela ir pra Goiânia. Aí chegou lá em Goiânia, fez o exame. Aí deu, constou o câncer no olho dela. E aí, então, eles mandaram ela voltar pra mode de arrumar as coisas dela, pra mode poder operar o olho dela. No que vieram pra tirar os pontos e dar a revisão do olho, o câncer tava voltando. Aí o doutor falou pra ela que esse câncer tinha vindo, que não ia enganar não, que tinha vindo pra matar ela. Aí ela ficou naquele desespero. As minhas filhas veio tudo naquele desespero, naquele choro.
(...) Tinha que ficar lá de 40 a 45 dias. Talvez tinha que arrancar o olhinho dela, fazer aquelas aplicações, cair o cabelinho tudo. E aí eu deitei na minha cama e pedi a Deus, rezando naquela fé, pedindo a Deus e aos Três Reis Santos que curasse a minha neta. Não deixasse aquela enfermidade. Curasse aquela enfermidade do olho dela. Com três dias eu levantei alegre, cantando, rindo. Saiu aquela angústia de dentro de mim. Aí a minha mulher ainda falou:
_ “É, você tá levantando assobiando, cantando, e a nossa neta, só Deus que tem dó. O que ela tá sofrendo não tem cura”.
E aí eu falei assim:
_"Pra Deus tem! Tem cura! Que ela já tá sã. Não precisa de preocupar com isso".
(...) Ela ia na segunda-feira, de madrugada, pegar a Kombi da prefeitura, pra levar ela no médico, pra mode ficar lá pra fazer o tratamento. E eu ainda falei pra minha mulher que não precisava de ficar. Que ela ia, mas ela ia voltar no mesmo dia, que chegava lá e já tinha sarado. Aí eu chamei minha filha, que é a mãe dela, e falei assim:
_ "Ó minha filha, hora que você for, que for passar ela lá no exame, que for dar a revisão, se ocê tem fé com Deus, você dobra mil vezes a sua fé. Que você chega lá e ela tá curada, se Deus quiser".
E na hora que os doutor fez os exames nela, que eles ficaram deferente. Uma médica e dois médicos, ficaram assim sem graça, meio deferente. Mandou ela sentar:
_ "Senta aqui, ô Marilza. Senta aqui, Geane".E eles sentou ao redor da mesa lá.
_ "Pois é, se houver o tal de milagre, Marilza, sua menina não tem mais nada no olho não. Não tem câncer mais no olho não, sua menina".
Aí ela pulou pra riba, chorou, gritou, ria de alegria e falou assim:
_ "Bem que o papai falou que eu ia voltar, que a minha filha tinha curado"
_ "Mas o seu pai falou isso?"
_ "Falou."
(...) E aí ela chegou e gritou, "ô vovó!". Aí minha mulher falou assim:
_ "Uai, é a Geane."
_ "Uai, mas tem que ser. O que que ela vai ficar fazendo lá. Deus curou ela, uai”.
Aí chegou, me abraçou.
_ "É, bem que o senhor falou, papai, que ela tinha sarado".
As outras meninas veio tudo falando comigo, apertando eu.
_ "Ah pai, o senhor viu qualquer coisa?"
_ "Minha filha, como um pecador igual eu vai ver as coisas, que Deus vai chegar e conversar comigo? Isso é a minha fé". Que eu tive tanta certeza que ela táva curada. Isso eu acho que não vou ter mais não. Posso. Eu já recebi muitas graças de Deus, graças a Deus. Mas igual essa fé que eu tive dentro de mim, essa certeza, acho que não vai ter mais não.
(...) Aí eu disse: _ "Pois é, minha filha, ocê ia ficar lá 40 a 45 dias lá, né? Aqui ocê vai ficar só 8 dias. Dia 30 que eu quero ocê aqui. Que ela vai carregar a bandeira dos três Reis”.
E ela girou do dia 31 ao dia 6 com a bandeira na mão. Quando chegava no morro, que via que ela era pequena pra andar, a gente carregava ela, a mãe dela ainda jogava ela na cacunda, carregando a bandeira. Tá na roça, no meio do mato, ela ainda caía com a bandeira, rindo. E carregava naquela maior alegria. Nós naquela maior satisfação. Aí cumpriu o voto. Ela carregou a bandeira os dias tudo na Folia e agora, graças a Deus, taí. Já casou. Tá sadia. Louvado seja Deus!
No outro ano, eu tive essa intenção de acompanhar os Três Reis. E aí fui acompanhar. Quando chega lá na fazenda do finado Salvador Vieira, faltou a quarta voz lá. Que eles não táva lá e o embaixador falou:
_ "É, vocês queriam fazer a folia mineira, mas não tem quem canta a 4ª voz!"
E aí parece que bateu dentro de mim, que é a fé que eu tenho, e eu falei assim:
_ "Não. Pode tocar aí, que eu vou experimentar. Se der certo, canto. Se não, chega com a folia goiana”.
Aí chegou a hora d'eu cantar e o embaixador falou que táva bom, por que que eu não falei com ele que eu era folião, moro esse tanto tempo aqui.
Aí eu falei pra ele:
_ "Não. Folião, não! Porque ocê sabe que ano passado táva cumprindo o voto da minha netinha. Era a fé. Não cantava. Nunca cantei, foi a primeira vez. É milagre dos três Reis." E aí eu continuei acompanhando. Ajudo a embaixar, faço a 1ª, faço a 2ª, faço a 3ª, faço a 4ª. Chega assim e já sei a altura que eu posso cantar. E canto naquela maior alegria, naquele maior prazer, naquela maior fé.